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quarta-feira, 15 de julho de 2009

Psiquiatria: Sonhos

Ele tinha sonhado a noite inteira com um pássaro escuro, de asas imensas e bico arqueado. No dia seguinte, não teve dúvida: jogou firme na água. Quando à tarde deu cavalo, o rapaz achou que provavelmente não tinha interpretado bem o sonho e ficou à espera de nova oportunidade.
Achar que sonho é presságio de algum acontecimento, bom ou mau, é uma das atitudes místicas mais antigas. E a crença se reforça com obscuras estórias de premonição parapsicológica, expressão que sugere erudição e, portanto, crédito. Mas na psiquiatria, os sonhos continuam a ser manifestações muito especiais, de sentido bem diferente.
Os psiquiatras costumam advertir, sempre que uma pessoa lhes pede para interpretar algum sonho, que a probabilidade de acertar com o significado de um sonho é menor ainda do que a de adivinhar o bicho que vai dar no dia seguinte. O sonho, isolado da constelação de fatores que constituem a história do paciente e dos caracteres de sua personalidade, nada significa. A boa interpretação de um sonho sempre tem de levar em conta o conjunto de dados que o psiquiatra haja conseguido apurar. Portanto, sonhar que está nadando não significa forçosamente que a pessoa esteja dando vazão a seu desejo reprimido de masturbar-se. O dado ou o símbolo, isolados, não significa coisa alguma.

A TEORIA DE FREUD - Os primeiros estudos importantes em torno da significação dos sonhos foram os que Freud empreendeu, no começo de suas investigações. Significativamente, o primeiro livro de Freud tratava justamente da interpretação dos sonhos. Hoje, as idéias de Freud não são plenamente aceitas, embora se reconheça que seu trabalho abriu caminho para uma teoria científica dos sonhos. Contudo, é importante iniciar uma apreciação do assunto justamente pelas primeiras descobertas freudianas no campo.
Para Freud, o sonho era um recurso ativo da mente, através do qual as tendências egoísticas e libidinosas se libertavam das limitações reais da vigília para encontrarem satisfação simbólica ou representada. A pessoa adormecida, assim, reproduzia “o isolamento feliz da vida intra-uterina, pois voltava ao primitivo estágio de distribuição da libido, ou seja, ao narcisismo absoluto, estado em que a libido e o interesse do ego, unidos e indiferenciados, existem no mesmo ego, que se basta a si mesmo”.
O sono, portanto, não representa nenhum estado de repouso ou de isolamento absoluto: os sonhos são uma atividade do sono. E essa atividade pode ser influenciada ou mesmo determinada por estímulos externos ocasionais, como um ruído ou cheiro, que passam a integrar o enredo do sonho. Mas não interferem com o significado.
Outros estímulos são de origem interior, psíquica ou somática (soma = corpo). Os estímulos interiores oriundos do psiquismo profundo do indivíduo em geral aparecem camuflados, de modo que os impulsos instintivos que lhes deram origem podem encontrar expressão livre, sem os embaraços da censura moral, que os reprime em condições normais.
Tais estímulos se manifestam por símbolos. Mas não se trata de símbolos fixos, e sim de símbolos subjetivos e circunstanciais, criados de acordo com as condições da situação vivida pelo indivíduo. É por essa razão que tais símbolos perdem significado quando isolados do contexto. Quando muito, alguns símbolos mais comuns poderão apresentar significado paralelo, em casos diferentes. Mas nunca virão a constituir uma linguagem estruturada em sistema válido para todas as pessoas e todas as situações. O domador de leões que sonha com um leão está ruminando mentalmente uma experiência comum e, portanto, o símbolo aí tem significado inteiramente diverso do leão sonhado por uma pessoa que jamais tenha visto uma fera de perto.

INTERPRETAÇÃO - Outro postulado freudiano é o de que o sonho nunca representa fielmente o estímulo ou o conjunto de estímulos que o determinam. Em outras palavras, o sonho não se identifica com suas causas, na aparência.
Interpretar um sonho, portanto, significa estabelecer a relação verdadeira entre as imagens e os impulsos instintivos que elas exprimem, Dessa maneira, tais impulsos inconscientes são conscientizados e o psiquiatra toma conhecimento de mais um dado do problema apresentado pelo paciente. Este, por sua vez, ao tomar consciência dos fatores que constituem a temática do sonho, passa a conhecer também a motivação de seu comportamento em certas circunstâncias. Em outras palavras, fica sabendo o que realmente quer; desse novo conhecimento poderá desenvolver orientação mais objetiva para seu comportamento, naquele aspecto.
Freud achava que, normalmente, o indivíduo conhece o significado de seus próprios sonhos, mas reprime a interpretação, para proteger-se das sanções de seu próprio superego, o mecanismo de censura da vida psíquica.
Os elementos sensíveis do sonho eram chamados por Freud o “conteúdo manifesto”. Quando, na descrição do sonho, o paciente relacionava o conteúdo manifesto com situações aparentemente irrelevantes, fazia uma associação livre. Para a interpretação dos sonhos, as associações livres são essenciais, porque ampliam o sentido aparente dos símbolos sonhados. Um lápis, no sonho, poderá ser o símbolo do órgão genital masculino. Esse sentido poderá ser confirmado se o sonho descrito for associado livremente pelo indivíduo com situações em que apareçam garrafas, armas de fogo, mangueiras. Cada um desses objetos pode ser um símbolo fálico, por causa de certas analogias - formato alongado, extravasamento de conteúdo por orifício e assim por diante. Isoladamente, poderá não ter tal sentido. Mas se em sucessivas associações aparecem símbolos análogos, a probabilidade de a interpretação ser correta aumenta proporcionalmente.
O problema, para o psiquiatra, é o de juntar tantos fragmentos esparsos e com eles compor um quadro, uma configuração do problema global. Entre outras coisas, a tarefa exige argúcia, perspicácia, técnica e um bocado de inteligência, porque qualquer erro poderá levar a um disparate.
Esse tipo de interpretação dos sonhos surgiu à medida que Freud realizava numerosos tratamentos psicanalíticos. Freud empregava a associação livre clássica para outros fins que não a interpretação dos sonhos. Em termos simples, a técnica consiste em dizer palavras esparsas e pedir ao paciente que responda a cada uma delas com a primeira palavra que lhe vier à mente. Cada palavra do psiquiatra, assim, constitui estímulo para manifestação de impulsos inconscientes reprimidos pelo paciente.
Ao aplicar essa técnica, na prática, Freud observou que em geral os pacientes associavam as palavras a cenas, objetos ou pessoas que figuravam em seus sonhos. A partir daí, nasceu-lhe a suspeita de que os sonhos estavam associados a experiências que a pessoa não podia viver por causa de repressão inconsciente. Parece trivial, hoje, mas era uma descoberta excepcional para a época.
O mecanismo de censura, porém, é um hábil adversário nesse duelo entre o consciente e os fugidios impulsos inconscientes. A pessoa poderá esquecer inteiramente os sonhos e até mesmo chegar a dizer que “nunca sonha”. Sabe-se hoje que todas as pessoas sonham, o que se comprova por comparações de ondas registradas num eletroencefalograma. Mas o medo de interpretar os sonhos faz com que se desvaneçam na memória todas as imagens remanescentes. Em tais casos, claro está que o mecanismo inconsciente de censura e bloqueio é muito mais eficaz do que normalmente se apresenta nas demais pessoas.

OS SONHOS - Segunda Parte

Cada pessoa, quando sonha, realiza uma “encenação” onde é o ator principal, o diretor, o iluminador, o cenógrafo, etc. O sujeito do sonho, enfim, desempenha o quadro sonhado da maneira que o inconsciente elege como a mais adequada, e a representação é ditada por ele. Suas manifestações não se prendem rigidamente à vida real, mas constituem elaboração dos elementos colhidos na vivência cotidiana. Tudo aparece conforme a fantasia criativa do sonho, onde os conceitos de tempo, espaço e lugar não têm o mesmo significado de quando o indivíduo está acordado.
A necessidade de uma pessoa realizar um desejo inconsciente pode manifestar-se no sonho de inúmeras maneiras, pois os estímulos internos e externos (veja Os sonhos - primeira parte) permitem-lhe compor um enredo. Podem aparecer, então, imagens aparentemente absurdas, ilógicas e extemporâneas. O sujeito do sonho pode estar no Ceilão para instantaneamente passar a agir no Pólo Sul. Nada é impossível, pois o inconsciente pode comandar o desenvolvimento como bem “entender”, desde que as imagens criadas (os símbolos) não venham a causar muita angústia ou aversão. Por isso, durante o sonho, a pessoa freqüentemente desenvolve um mecanismo de defesa contra qualquer ameaça à sua integridade psíquica. A este mecanismo, Freud deu o nome de censura onírica (de Oneiros, demônio grego, que na mitologia significava sonho).

CENSURA NO SONHO - A deformação nos sonhos é produzida por uma das facetas do “organizador da peça”: o ego, que nesse momento assume o papel de figurinista e transfigura os personagens e as coisas para identifica-los com uma situação aparentemente irreal.
A censura muito forte geralmente se manifesta quando os fatos camuflados são, na realidade, manifestações nas quais o indivíduo vê uma situação indecorosa ou extremamente desagradável. O ego, então, veda a passagem da verdade. Assim, as sanções que a sociedade inflige aos indivíduos fazem, por exemplo, com que os instintos sexuais só possam ser dirigidos a pessoas que não sejam de sua família (tabu do incesto). Nos sonhos, um desejo libidinoso em relação a uma irmã ou à mãe não aparece no conteúdo manifesto do sonho: Vem disfarçado, com outra roupagem.
O ego, portanto, colabora para que o sono mantenha uma característica repousante. Quando o sonho se inicia, cada estímulo externo ou interno, ou ambos, passa a integrar o enredo, de acordo com a vontade inconsciente que as pessoas têm de realizar um objetivo. Para Freud, seria sempre um fim instintivo, mas, modernamente, o conceito de realização não se restringe somente ao instinto; valem também as aspirações culturais.
Quando uma pessoa necessita afirmar-se dentro de seu trabalho ou em seu meio social, os sonhos aparecem marcados por esse anseio. E as forças que lhes são contrárias também entram na “peça”, às vezes de maneira ordenada e facilmente compreensível, mas a maioria das vezes completamente camuflada. Por isso, uma pessoa pode sonhar e lembrar-se que tinha de fazer muito esforço para vencer uma barreira (o objetivo) e que, de repente, estava numa rua deserta, impossibilitada de comunicar-se (adversidades).

AS DEFORMAÇÕES ONÍRICAS - Apesar de o ego ter menos restrições morais no sonho, ainda assim elas se manifestam. As transfigurações que aparecem são prova disso. Se fosse possível fazer uma escala de deformações oníricas, diríamos que, na dependência da censura, elas são tão mais distantes do fato real que representam quanto maior forem as sanções que o indivíduo sofre quando está acordado.
O prolongamento dos “restos diurnos” se liga às lembranças do inconsciente para aparecerem na elaboração dos sonhos. Portanto, o sonho é um “composto” no qual entram os fatores recentes da vida consciente, os do inconsciente remoto e, por vezes, alguns estímulos de origem somática.
Alguns predominam durante a “encenação”, mas nem sempre são os que realmente importam. Nesse caso, a preocupação mais profunda e mais censurada parece não ter importância, pois ficou deslocada e assume um “papel secundário”.
Geralmente, esses deslocamentos estão ligados a problemas afetivos. As necessidades de afeto, que uma pessoa acordada pode dirigir para um animal de estimação ou para a coleção esmerada de certos objetos, podem aparecer em seus sonhos completamente deslocadas. Por vezes pode ser tão “canceladas” da lembrança do sonho que, quando a pessoa vai transmiti-la, passam a ser apenas um ponto obscuro, mas não completamente esquecido.
Dessa maneira, o mecanismo censura a lembrança completa, mas não a elimina. A pessoa não compreende por que aquele assunto aparentemente irrelevante a perturba tanto. As limitações sexuais, por exemplo, podem aparecer tênues, desde que vinculadas a cenas que, no sonho, trazem muita angústia. Se a preocupação é constante, também constantes serão esses tipos de deformações, pois o ego não deixaria que ele mesmo sofresse continuamente. A censura onírica é, portanto, um mecanismo de autodefesa.

MATÉRIA-PRIMA - A maneira de pensar de uma pessoa acordada, suas possibilidades de raciocínio lógico, seus conceitos de tempo e espaço, seu “mundo vivo”, portanto, não dirigem o sonho. Quando num sonho aparece uma pessoa que não se vê há anos, ela entra no cenário onírico sem nenhum estanto para quem está sonhando.
Assim, o que chamamos de inconsciente durante a vigília torna-se o consciente do sonho. As lembranças dos dias imediatamente anteriores podem trazer, durante o sono, algumas ligações com esse “consciente”, que parece não existir durante as atividades de um indivíduo acordado.
Por isso, é muito comum que uma pessoa fique atônita com o desenvolvimento de um sonho, pois imagina que não tem preocupações de um determinado tipo. É como se um sistema de comunicação interno transmitisse à própria pessoa uma mensagem que ela tem resistência em aceitar como sua.
Outro ponto importante é o relacionamento das pessoas com o mundo exterior. Para cada indivíduo, a realidade se apresenta de maneira diversa, de acordo com suas necessidades de sobrevivência. Assim, para várias pessoas, um mesmo objeto ou circunstância pode ter conotações totalmente diversas que dependem diretamente do seu tipo de vida. Mas, inconscientemente,podem implicar por exemplo em necessidades afetivas semelhantes, que vão ser objeto de preocupação durante o sonho. Essa nova realidade passa a ser manuseada de maneira totalmente diferente da vida “acordada”.
Muitas vezes, as pessoas percebem mais nitidamente o caráter de alguém durante o sonho do que na convivência. Mas a opinião contrária que seus amigos possam ter sobre essa pessoa inibe uma aceitação imediata de sua intuição que um contato desinibido poderá comprovar. Assim, no sonho, há um desligamento da realidade e melhor capacidade de aquilatação, embora não perceba de imediato.
No sonho, não é irrelevante. Os ingredientes do sonho são sempre úteis para que o todo possa ser compreensível. Muitas vezes, em processos neuróticos, é de grande valia que todas as coisas tenham uma interpretação. Dela poderá ocorrer uma série de ligações com o comportamento anormal do indivíduo. E, dentro da psicanálise, cada manifestação do paciente é importante. Assim é possível a formação de um quebra-cabeça com todas as peças e o reconhecimento que o indivíduo passa a ter de seus próprios problemas. Os símbolos são “traduzidos” para que se descubram as verdadeiras imagens que estão por trás da camuflagem elaborada pela censura.

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Quem sou eu

Nascido no Japão como filho de massagista shiatsu em 1947, imigrado ao Brasil em 1959, residente em Marília/SP/Brazil desde 1997.

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