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quarta-feira, 15 de julho de 2009

Psiquiatria: Narcisismo

Narciso, filho da ninfa Liríope e do rio Cefisso, teve seu destino vaticinado por Tirésias: haveria de morrer quando visse a própria imagem. A profecia se cumpriu quando Narciso se viu refletido na água de uma fonte da floresta. Imediatamente perdeu-se de amor pela própria beleza e, de tão embevecido, nunca mais pode abandonar o local. De seu corpo nasceram raízes e seu rosto se transformou numa flor, a que leva seu nome até hoje.
Essa lenda inspirou o termo psiquiátrico narcisismo, que Nacke empregou em 1889 para designar a atitude da pessoa que toma seu próprio corpo como objeto de seu interesse sexual. Freud adotou o termo em sentido mais amplo para complementar sua teoria da libido. Narcisismo, para Freud, designava a transferência da libido para o ego, em vez de objetos do mundo exterior.
Do ponto de vista puramente genético (isto é, de raiz instintiva), o narcisismo caracteriza a pessoa enamorada por si mesma. Nesse sentido restrito, o termo só poderia ser aplicado a um número muito limitado de pessoas. E o significado biológico envolve necessariamente a idéia de contemplação do próprio corpo, o que faz pensar na bruxa de Branca de Neve e nos halterofilistas diante do espelho.
Mas, na clínica psiquiátrica, a acepção de narcisismo é muito mais ampla e discutível. Narcisismo tem sido empregado para designar manifestações mais sutis de interesse voltado para a própria pessoa. Abrange, assim, qualquer preocupação excessiva com relação à própria saúde ou com a aparência pessoal, desejo angustioso de realizações, desinteresse acentuado em relação a outras pessoas (exceto a preocupação em fazer-ser amado, o que significa o desejo de “contagiar” o mundo com o amor por si mesmo).
Como se vê, o narcisismo envolve uma hipertrofia do ego, e portanto caracteriza uma forma de egoísmo e egocentrismo. Em geral, a personalidade narcísica assume exteriorizações de dominação e imposição de vontade. Quando disciplinada, essa tendência à auto-afirmação pode ser canalizada para realizações efetivas, sobretudo como liderança política e religiosa. Napoleão, Hitler, César e grandes líderes religiosos servem de exemplo para esse tipo de personalidade narcísica, embora outros traços de caráter desempenhem papel importante na atuação desses personagens. Quando a energia se dispersa, por ação de outros fatores neuróticos que a neutralizam, o tipo narcisista revelará seu caráter em manifestações voluntariosas igualmente dispersivas. Como já se demonstrou em outros artigos, a personalidade do neurótico é como um saco de gatos: por dentro muita energia e até desespero; mas por fora as ações são vistas como de curto alcance, contraditórias e incoerentes.
Mas nem sempre o narcisismo se caracteriza por desejos de dominação. A sede de ser amado, e ver confirmadas suas qualidades supostamente superiores, pode levar o narcisista a assumir atitudes de falsa humilde e submissão. Para isso, bastará que ele se convença de que a humildade e a submissão são qualidades superiores.

NASCE UM NARCISO - O que caracteriza o narcisismo, portanto, não é o mero egoísmo e nem tampouco a apreciação de qualidades reais. A mulher bonita pode encontrar uma satisfação real e perfeitamente normal ao tomar consciência de seus predicados físicos. O homem inteligente e o que revela uma especial habilidade na realização de negócios poderão igualmente desfrutar o prazer de comprovar tais qualidades.
O que é anormal, e caracteriza uma atitude narcisista, é a avaliação exagerada de qualidades reais ou a atribuição de qualidades inexistentes. Não pode ser considerado narcisista o homem que verifica e aprecia sua força física, quando ela efetivamente for superior à normal. Mas se desse simples aspecto de sua individualidade ele for levado a concluir que é superior a todos os outros homens, sua atitude será a de uma clara supervalorização narcisista. Igualmente, a pessoa que se convence de possuir dotes artísticos, quando lhe faltam inspiração e preparo técnico para realizar algo significativo nesse campo, estará atribuindo a si uma qualidade inexistente. E essa avaliação exagerada caracteriza uma atitude narcisista: supervalorização do ego.
Repressões violentas impostas pelo mundo exterior a uma criança são os fatores mais comuns na formação de um narcisista. Quando no ambiente familiar ou de escola a criança experimenta reprovações acentuadas e repetidas de seu modo natural de ser, essas barreiras poderão gerar-lhe a idéia de que não á amada, nem aceita. Desenvolve-se a partir daí o temor e a desconfiança em relação à hostilidade exterior. E, por não sentir-se amada, a criança perde muito de sua capacidade de amar.
Por quê? Porque a carência de amor provindo de outras pessoas determina a necessidade de ela própria prover seu ego de aprovação. O interesse afetivo, que normalmente se desenvolveria em relação a objetos e pessoas fora dela, acaba por voltar-se para dentro. Se ninguém lhe dá amor, ela própria se dará. Esse fenômeno tanto poderá decorrer de um rigor disciplinar que ela considere injusto como de um desinteresse afetivo que ela perceba nos pais e nas pessoas de sua convivência.
Como não é aceita pelo que realmente é, a criança tende a abandonar a natureza real de seu próprio ego e a substituí-la por outra, basicamente imaginária, porém capaz de obter a aprovação desejada. O mesmo processo poderá decorrer de outro tipo de relacionamento também bastante comum entre pais e filhos: os pais atribuem à criança qualidades que ela sabe não possuir, tais como beleza, inteligência ou talento artístico excepcional. Sabedor de que os pais o apreciam por ser “um gênio”, o garoto tudo fará para ser um gênio. E tão cedo tome conhecimento de que não é, passará a fingir que é, por meios fraudulentos.
Em qualquer dos dois casos, o resultado é basicamente o mesmo. A criança saberá que não é amada pelo que é. E tentará desesperadamente corresponder à idéia falsa que fazem dela, para conseguir mérito, aprovação, amor. Em tão dramática luta, três tendências poderão desenvolver-se, conforme concorram outros fatores: a) a criança adota os padrões de opinião vigentes; b) submete-se humildemente à vontade alheia, numa atitude de auto-anulação; c) promove a supervalorização do ego.
Nesse terceiro processo, que interessa particularmente agora, o indivíduo se refugia no mecanismo de defesa de negação da realidade (ver “Mecanismo de Defesa”). Não que a realidade passe a ser negada. Apenas, assume aspecto secundário. O indivíduo se imagina dotado de potencialidades e qualidades ocultas que “um dia” o levarão a ser presidente da República, um grande magnata, cientista ou meramente o maior jogador de futebol do mundo. Em todos os casos, ele passa a ser um herói que ninguém suspeita que ele seja, até que “um dia”...
Se não o amam, se não o aprovam, é porque as pessoas não o compreendem nem sabem de suas “secretas qualidades”. Esse mecanismo de defesa tem inspirado muitas obras de arte, em geral cômicas, porque a discrepância entre as aspirações do narcisista e a realidade retratam a essência do ridículo: o que caracteriza o ridículo é justamente o contraste.
Mas nas melhores obras de literatura e do cinema que focalizam o problema, sempre se pode divisar o sentido trágico por trás do cômico. O narcisista se destrói pelo desamor às pessoas, por sua incapacidade de amar e pelo duelo desigual contra uma realidade imponente. Mas, sem a defesa do narcisismo, ele provavelmente se afogaria ainda antes, na ansiedade que inundaria seu espírito.

O NARCISISMO - Segunda Parte

A necessidade neurótica de afeição, admiração e aprovação do narcisista típico não pode ser retificada espontaneamente. Para ele, relacionamento humano desse tipo é uma condição de sobrevivência. Não se sentir amado, admirado e aprovado em grau intenso e muito amplo significa para ele encurralar-se nos labirintos de uma ansiedade insuportável.
No campo da arte, e outros setores de atividades afins, essa condição pode ser observada com nitidez. As pessoas com tendências narcisistas se encaminham forçosamente para atividades em que ocorra alta valorização do desempenho individual: cinema, teatro, televisão, rádio, jornalismo, política ou esporte profissional. Isso explica a competição exaltada (e muitas vezes inescrupulosa) que ocorre nessas situações. Explica também padrões de conduta incomum, extravagância de atitudes e no modo de vestir ou falar. Em todos esses processos está presente a preocupação de marcar o ambiente com a presença de sua pessoa. É o ego que precisa inflar-se e parecer maior do que na realidade é, não importa muito qual o artifício requerido para isso.

MALES NO NARCISISMO - Para o narcisista não há escapatória: a ansiedade que ele busca evitar acabará por se impor, seja por ação do tempo, seja por outros fatores. O cantor perderá sua popularidade, o halterofilista se tornará flácido, a vedete fatalmente acabará eclipsada por outra mais jovem ou mais talentosa. O inferno da angústia acabará por abocanhar a todos.
Mas, além desse “juízo final”, o narcisista está exposto a muitos outros tipos de sofrimento. Como as pessoas o julgam por manifestações aparentes, e não pela natureza essencial de seu caráter, o narcisista acaba desenvolvendo o vício de cultivar a aparência, e não a essência. Porque com a aparência ele consegue gratificação afetiva de si próprio e dos outros.
Quando lhe derem um trabalho, ele tenderá a aceitar ou recusar, conforme o prestígio que daí resulte (a própria compensação financeira de um trabalho é avaliada pelo narcisista em termos de prestígio: ganhar bem é importante para ele porque “dá cartaz” e não porque lhe satisfaça outras necessidades normais). Poderá empenhar-se em conquistar uma mulher bonita, não tanto pela atração real que ela exerça sobre ele, mas para desfrutar a boa impressão que essa conquista supostamente, ou de fato, causará sobre seus amigos.
Apesar de toda a couraça com que se protege, o narcisista não pode escapar inteiramente à ansiedade produzida por usa condição. Ele “sabe”, sem ter consciência disso, que está exposto ao perigo de ser desmascarado a qualquer momento. A aparência cultivada para seu auto-engrandecimento poderá ruir a qualquer instante.
Para escapar a essa situação de “suspense”, o narcisista mergulhará no redemoinho de um círculo vicioso. Passará todo o tempo a cuidar dessa barreira defensiva que é a aparência falsa de sua personalidade supervalorizada. E inventará novos atributos, na atitude de uma pessoa temerosa que empilha na barricada tudo que tem à mão.
Um dos recursos defensivos mais comuns, em tais casos, consiste na elaboração de idéias de grandeza ainda mais ousadas e fantasiosas. Critica o mundo por não reconhecer nele o gênio que supõe ser. O fato de não ter sucesso, nem fama, nem glória, nem dinheiro nunca é admitido como resultado da incoerência improdutiva de seu modo de ser. Ao contrário, ele se convence de que lhe faltam oportunidades por causa da “injustiça social” e que ninguém compreende seus quadros nem suas poesias simplesmente porque essas obras são arrojadas demais para a época em que ele vive.
As exigências sobre as demais pessoas e sobre o mundo, para justificarem-se, impõem acentuação crescente de supostas qualidades do narcisista, que afetará ser capaz, generoso, financeiramente estável e próspero, influente e assim por diante. Mas como as pretensões em relação ao mundo são sempre exageradas quando provêm de um narcisista, as pessoas nem sempre se dispõem a satisfaze-las. Quando se interessam, por outro lado, buscam comprovar o que o narcisista efetivamente tem a oferecer e logo descobrem que as qualidades exibidas estão supervalorizadas.
Dois exemplos disso podem ser colhidos na vida comum: o narcisista que se candidata a um emprego tentará dar a impressão de ser muito mais capaz, experiente e inteligente do que na verdade é. Mas ao submeter-ser a testes psicotécnicos, o quadro resultante será muito mais pobre do que o de suas declarações. E o empregador se recusará a contrata-lo. Noutro exemplo: para causar impressão favorável sobre certa mulher que o interesse, o narcisista apresentará uma imagem deformada de si próprio. Afetará riqueza ou posição social, por exemplo quando inevitavelmente a mulher descobrir a fraude, passará a desconfiar de todas as outras afirmações e poderá desinteressar-se dele em definitivo.
Em situações como as duas descritas acima, sobrevirá uma inevitável decepção e um abalo na idéia engrandecida que o narcisista faz de si próprio. Em resposta, ele tenta reafirmar-se com a elaboração de outras idéias fantasiosas que lhe tornem mais acentuadas as supostas qualidades. E recomeça a volta do círculo vicioso.
Mas dos desapontamentos repetidos e das ilusões que nutre em relação a seus direitos sobre as pessoas, o narcisista vai acumulando ressentimentos. E quanto mais aumentam a hostilidade e as ilusões paliativas, mais crescem a ansiedade e a improdutividade de sua vida real. Cada vez ele espera com maior petulância que as pessoas o ajudem, façam sacrifícios por ele e que a solução de seus problemas “caia do céu”. Isto é, sobrevenha sem nenhum esforço dele.
Nesse processo, o narcisismo acaba por gerar maldade: o narcísico se torna egoísta, rancoroso, desonesto, desconfiado, cruel e inflexível para com os que o amam. Como qualquer doença, o narcisismo pode complicar-se.
Narcisismo é apenas uma tendência entre outras que compõem a personalidade. E, por isso, suas manifestações nunca aparecem isoladas na prática, e sim combinadas com outras tendências que pode acentuá-la (como o sadismo) ou atenuar-lhe parcialmente os efeitos (como a existência de dotes reais que lhe permitam usufruir retribuições genuínas).
O paradoxo dramático do narcisismo consiste no fato de que o narcisista é, antes de tudo, incapaz de amar, pois amor supõe doação, entrega, interesse pelo par. E, apesar disso, não pode dispensar admiração e amor de outros.
O narcisismo é tão comum na cultura ocidental que o egocentrismo, a permanente “promoção” pessoa, a exploração egoísta de outras pessoas (tanto no plano afetivo como no plano material) são francamente encontrados em neuróticos e em outros indivíduos que não pode ser definitivamente declarados como tal.
As pessoas que amam os narcisistas acabam por nutrir secreta hostilidade em relação a eles. Não só nesses casos, mas em qualquer outro em que se estabeleça dependência afetiva sempre haverá rancor, em manifestações ocasionais ou freqüentes, conforme o caso. Exemplo típico é o da dupla Gordo e Magro, sempre amigos, mas sempre ressentidos com a exploração afetiva de um sobre o outro.
Finalmente, importa ressaltar a diferença entre o amor-próprio normal e a inflação egoísta do narcisismo. A pessoa que tem consciência de qualidades reais encontra nisso uma satisfação perfeitamente normal. A pessoa que necessita atribuir-se qualidades fictícias é narcisista. A diferença, portanto, não é de grau. Não se trata de o indivíduo normal gostar “um pouco” de si, enquanto o narcisista se adora. Trata-se apenas de autoestima por si próprio ser proporcional às qualidade e realizações autênticas que a pessoa haja alcançado.

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Quem sou eu

Nascido no Japão como filho de massagista shiatsu em 1947, imigrado ao Brasil em 1959, residente em Marília/SP/Brazil desde 1997.

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