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quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Psiquiatria: Tentativa de Suicídio - Avaliação Clínica e Tratamento

Neury José Botega

Introdução

A tentativa de suicídio é um sinal de alarme. Revela a atuação de fenômenos psicossociais complexos em pessoas que vivem sob tensão e que expressam de modo agudo o seu padecimento. “Tentativa de Suicídio” apenas nomeia um comportamento; o diagnóstico a ser feito, em cada caso, deve ser situacional.
O suicídio encontra-se entre as 10 principais causas de morte no mundo, e entre as 3 primeiras quando se considera a faixa entre 15 e 34 anos de idade. Segundo dados da OMS, em termos globais, a mortalidade por suicídio aumentou em 60% nos últimos 45 anos. Nesse período, os maiores coeficientes de suicídio deixaram de pertencer à faixa mais idosa da população para atingir, também, faixas mais jovens (35 a 45 anos, e mesmo 15 a 25 anos em alguns países). O Brasil, embora apresente baixo coeficiente de suicídio (3,5/100.000 habitantes/ano), encontra-se em 9º lugar na lista de países líderes em mortalidade por suicídio.
Estima-se que os coeficientes de tentativas de suicídio sejam pelo menos 10 vezes superiores aos de suicídio. Um estudo realizado em Campinas revelou um índice de 150 tentativas de suicídio para cada 100.000 habitantes. Em 75% dos casos, a tentativa ocorreu em menores de 27 anos, principalmente do sexo feminino.
A tentativa de suicídio é um dos principais fatores de risco para morte por suicídio ou por outras causas violentas (acidente de trânsito, homicídio, afogamento). Das pessoas que tentam o suicídio, 15 a 25% repetem a tentativa no ano seguinte e 10% conseguem se matar nos próximos 10 anos. Esta mortalidade suplanta em até 100 vezes a observada na população geral, pareada por idade e sexo. Dentre as pessoas que cometem suicídio, 45 a 70% apresentavam transtornos do humor, e metade já o haviam tentado anteriormente.
Dentre os métodos utilizados nas tentativas de suicídio destacam-se a ingestão de excesso de medicamentos, ingestão de venenos e agrotóxicos, cortes e perfurações. Sabe-se que quanto mais letal tiver sido o método utilizado, maior a chance de nova tentativa. Entretanto, a intencionalidade suicida não deve ser desconsiderada quando o método utilizado envolver menor perigo para a vida do paciente.
Um grupo de interesse especial é constituído por pacientes que repetidamente ferem-se com lâminas de barbear, cacos de vidro ou cigarros. Essas pessoas geralmente justificam seus atos como uma tentativa de diminuir a angústia e a vivência de despersonalização. a visão do próprio sangue é acompanhada por sensação de alívio e prazer. Baixa auto-estima, comportamento impulsivo, abuso de álcool e de drogas e transtornos de identidade sexual são frequentemente encontrados nesse grupo.

Avaliação Clínica

Entrevista com o paciente:

A entrevista visa à obtenção de um número considerável de informações: caracterização do ato suicida (método, circunstâncias, intencionalidade), dados de cunho epidemiológico (fatores de risco, eventos de vida), fatores predisponentes e precipitantes, aspectos psicodinâmicos (conflitos, motivações, fantasias a respeito da morte), antecedentes pessoais e familiares e rede de apoio social (com quem o paciente se relaciona e pode contar em casa, no trabalho, em igreja e associações). é necessário formar uma idéia a respeito da personalidade do indivíduo, principalmente no que diz respeito a mecanismos de defesa e de adaptação (coping) adotados em situações de crise.
Desde o início, é preciso tentar o estabelecimento de um vínculo que garanta a confiança e a colaboração do paciente num momento em que ele possa se encontrar enfraquecido, hostil e nem sempre disposto a colaborar. A noção simplista de que o paciente menciona ou tentou o suicídio tão somente para “manipular” deve ser rejeitada. O profissional deve partir de perguntas mais abrangentes, não-diretivas, incentivando o paciente a falar livremente. Gradualmente, ele deve passar a investigar a ideação suicida. Perguntas objetivas devem, então, ser feitas com o intuito de contribuir na avaliação do risco de suicídio (Tabela 1). A simples negativa do paciente quanto à intenção de nova tentativa de suicídio não deve, por si só, encerrar a avaliação clínica.

Tabela 1: PERGUNTAS SOBRE IDEAÇÃO E RISCO DE SUICÍDIO

- Tem obtido prazer nas coisas que tem realizado?
- Sente-se útil na vida que está levando?
- Sente que a vida perdeu o sentido?
- Tem esperança de que as coisas vão melhorar?
- Pensou que seria melhor morrer?
- Tem pensamentos de pôr fim à própria vida?
- São idéias passageiras ou persistentes?
- Pensou em como se mataria?
- Já tentou fazer algum preparativo ou chegou a fazê-lo?
- Tem conseguido resistir a esses pensamentos?
- É capaz de se proteger e retornar para a próxima consulta?
- tem esperança de ser ajudado?

Risco de suicídio:

A identificação de algumas características sócio-demográficas do paciente, de síndromes clínicas, de traços de personalidade e de situações de vida que se associam a taxas elevadas de suicídio auxilia o clínico a fazer uma estimativa (Tabela 2). Além de transtornos psiquiátricos (do humor, esquizofrenia, dependência química e de personalidade), também certas doenças incapacitantes, dor crônica e lesões desfigurantes relacionam-se a uma maior taxa de suicídio.
Algumas escalas psicométricas foram desenvolvidas com o objetivo de estimar o risco de suicídio. Dentre as mais utilizadas encontram-se as escalas de intencionalidade suicida (alguns de seus itens estão na Tabela 3), de ideação suicida e de desesperança, todas desenvolvidas por Beck ET AL, (1974). A escala de Buglass e Horton (1974), composta de seis itens (Tabela 4), consegue prever até 48% dos casos que repetirão a tentativa de suicídio (vale lembrar que no mínimo 50% dos que o farão não obtêm pontuação elevada nessa escala).
Algumas questões dessas escalas podem ser incorporadas na entrevista clínica, sistematizando a avaliação e deixando o médico mais atento à fatores que devem ser avaliados. Basear-se tão somente na intuição, após breve entrevista, é temerário. Devemos estar atentos para evitar uma divisão estereotipada entre os “transtornos de personalidade que fatalmente repetirão a tentativa de suicídio” e os “indivíduos mais bem ajustados que estão passando por uma crise”. Não há uma diferença inequívoca entre o grupo que repete e o que não repete atos auto-agressivos.
Lembrar, ainda, que um dos melhores indicadores para a avaliação do risco de suicídio é a tomada de consciência, por parte do avaliador, de sua própria ansiedade (contra-transferência) diante do paciente. A incapacidade de experimenta ansiedade nessas ocasiões, quando isso é decorrente de um contato empático pobre, apressado ou de defesas excessivamente fortes, impede a avaliação clínica e o trabalho terapêutico.

Tabela 2: FATORES DE RISCO PARA SUICÍDO

Sócio-Demográficos:
- Sexo masculino
- Acima dos 45 anos
- Separados / divorciados > solteiros > viúvos > casados
- Estratos econômicos mais rico e mais pobre
- Áreas urbanas
- Desempregados, aposentados
- Ateus, protestantes > católicos, judeus
- Isolamento social
Psicológicos:
- Perda recente
- Perda dos pais na infância
- Instabilidade familiar
- Datas importantes (reações de aniversário)
- Traços de personalidade: impulsividade, agressividade, labilidade de humor
- História familiar de doença afetiva / alcoolismo / suicídio
Psiquiátricos:
- Depressão, alcoolismo, drogadição, esquizofrenia, síndromes orgânico-cerebrais
- Transtornos de personalidade
- Tentativa de suicídio pregressa
- Doenças físicas incapacitantes, dolorosas, terminais

Tabela 3: CIRCUNSTÂNCIAS QUE SUGEREM ALTA INTENCIONALIDADE SUICIDA

- Comunicação prévia de que iria se matar
- Mensagem ou carta de adeus
- Providências finais (por exemplo, conta bancária) antes do ato
- Planejamento detalhado
- Precauções para que o ato não fosse descoberto
- Ausência de pessoas por perto que pudessem socorrer
- Não procurou ajuda logo após a tentativa de suicídio
- Método violento, ou uso de drogas mais perigosas
- Crença de que o ato seria irreversível e letal
- afirmação clara de que queria morrer
- Arrependimento por ter sobrevivido

Tabela 4: FATORES PREDITIVOS DE REPETIÇÃO DE TENTATIVA DE SUICÍDIO

- História prévia de hospitalização por auto-agressão
- Tratamento psiquiátrico anterior
- Internação psiquiátrica anterior
- Transtorno de personalidade anti-social
- Alcoolismo / drogadição
- Não estar vivendo com a família


Tratamento

A internação psiquiátrica pode ser considerada em diversas situações, entre as quais: obtenção de uma anamnese mais acurada; determinação do risco de suicídio num período mais longo de observação; auxílio ao paciente para que ele restabeleça a confiança em suas relações interpessoais; a necessidade de tratar o ato suicida com a devida seriedade, resgatando o paciente de uma situação estressante e provocando a conscientização dos familiares; reavaliação do tratamento psiquiátrico que vinha sendo administrado. Quando houver risco iminente de suicídio, recomenda-se a internação psiquiátrica, ainda que involuntária. Nesse caso, os familiares e a autoridade judicial competente devem ser comunicados.
No caso do paciente internado em hospital geral, algumas precauções devem ser tomadas: remoção de objetos perigosos que estejam ao alcance do paciente; leito de fácil observação pela enfermagem, se possível em andar térreo ou em local com proteção nas janelas; enfatizar o risco de suicídio no prontuário e na papeleta da enfermagem; acompanhamento constante, e registro do estado mental do paciente. A disponibilidade e a capacitação da equipe assistencial são mais importantes que as barreiras físicas. O contato pessoal mais freqüente deve ser uma atitude de apoio, e não de intrusão e vigilância, simplesmente. Discussões regulares facilitam a capacitação da equipe para lidar com esses casos.
Deve-se redobrar a atenção em alguns períodos mais críticos: troca de turnos da enfermagem, licença hospitalar (quando ocorrem de um terço a metade dos suicídios entre pacientes internados), primeira semana após a internação e primeiro mês após a alta hospitalar. Mesmo com todo o cuidado dispensado, alguns pacientes cometem o suicídio enquanto estão sob cuidados médicos. Tal fato causa um impacto muito grande nos outros pacientes, entre os familiares e na equipe assistencial, ocasionando sentimentos de culpa, raiva e ansiedade.
A adesão ao tratamento ambulatorial é baixa, mesmo quando se montam equipes multiprofissionais treinados e motivadas para atender esses casos. Aproximadamente metade dos pacientes não comparece à primeira consulta ambulatorial, e a freqüência de abandono do tratamento é elevada. A Tabela 5 traz alguns fatores, relacionados à situação do paciente, que favorecem o tratamento ambulatorial. Da parte do médico, algumas condições devem ser preenchidas: ter capacitação em Psiquiatria, sentir-se seguro para lidar com esse tipo de problema, dispor de quantidade e flexibilidade de tempo para acompanhar o paciente, contar com retaguarda caso necessite se ausentar, ser acessível ao contato telefônico (o que não substitui o contato pessoal) e saber prescrever medicação em doses e quantidades adequadas.
Na maioria das tentativas de suicídio, os psicofármacos são raramente necessários. Devem, sim, ser retirados aqueles que estejam sendo usados indevidamente pelo paciente. Uma parcela dos indivíduos sob risco de suicídio necessita de tratamento psiquiátrico específico, geralmente para depressão e alcoolismo. No tratamento da depressão, o início da melhora clínica implica um período mais crítico quanto ao risco de suicídio.
A psicoterapia deve se orientar para as circunstâncias pessoais e sociais emergentes que colocam o paciente sob risco e deve ser flexível, diretiva, oferecendo apoio e encorajamento. O terapeuta “empresta”, temporariamente, seu desejo e seu ego, assumindo papel mais ativo; pode convocar familiares. Situações de perda (reais, potenciais ou imaginadas) e sentimentos de desamparo estão frequentemente presentes. A maioria dos pacientes não se interessa por terapia que favoreça insight; eles valorizam mais suas relações sociais para manter a auto-estima e o ajustamento social.
A problemática psicológica encontra-se comumente inserida em um contexto de sérias dificuldades familiares e sociais. Os objetivos da psicoterapia não podem ser ambiciosos. Já que a impossibilidade de cumpri-los pode baixar ainda mais a auto-estima. Passada a fase de maior risco de suicídio, a psicoterapia de base analítica pode ser útil a um grupo de pacientes com experiências infantis de perda ou separação, que se apresentam relativamente bem integrados, mas com baixa auto-estima e sentimentos de culpa e auto-desvalorização.
Estudos prospectivos demonstram que o tratamento de pessoas que tentam o suicídio favorece a melhoria nas relações interpessoais e na adaptação social das pessoas que tentaram o suicídio. Não conseguiram demonstrar, entretanto, a redução no número de novas tentativas de suicídio entre pacientes acompanhados ambulatorialmente, quanto comparados com controles. O maior problema metodológico desses estudos é que nenhum conseguiu reunir o número necessário de pacientes e distribuí-los em dois grupos (tratamento versus não-tratamento). Um estudo com suficiente força estatística para demonstrar um decréscimo de 5% (no caso, de 15% para 10%) no índice de repetição de suicídio, ao final do primeiro ano de tratamento, necessitaria de, no mínimo, 500 pacientes divididos aleatoriamente em um e outro grupo de tratamento.

Tabela 5: FATORES QUE FAVORECEM ADESÃO AO TRATAMENTO AMBULATORIAL

- Intencionalidade suicida relativamente baixa
- Capacidade de estabelecer boa aliança terapêutica
- Comprometimento com uma proposta de tratamento
- Capacidade de garantir que não se agredirá
- Não há ocorrências de comportamento impulsivo
- Não há abuso de álcool ou de drogas
- Ausência de tentativa de suicídio no passado
- Não há fatores estressantes graves em casa
- Não há complicações por problemas físicos
- Preferência pelo tratamento em casa no lugar da internação
- Recursos financeiros e de moradia adequados
- Boa rede de apoio social


6 comentários:

  1. A Clínica de Recuperação Grupo Casoto apoia a iniciativa e também trata a Dependência Química e Alcoolismo de uma forma efetiva através de Internação Involuntária de Drogas e Álcool.
    www.grupocasoto.com.br

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  2. Gostei muito do artigo! As vezes pra salvar uma vida se faz necessária a internação involuntária, mas deve-se saber o momento certo de se fazê-la: http://blog.viversemdroga.com.br/internacao-involuntaria/

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  3. Eu já tentei duas vezes me suicidar

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Quem sou eu

Nascido no Japão como filho de massagista shiatsu em 1947, imigrado ao Brasil em 1959, residente em Marília/SP/Brazil desde 1997.

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