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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Psiquiatria: Transtornos Dissociativos e Conversivos

Dr. José Atílio Bombana
Doutor em Psiquiatria pelo Departamento de Psiquiatria da Unifesp-EPM
Psicanalista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Introdução

Os transtornos dissociativos (ou conversivos) correspondem a quadros clínicos em que existe uma perda parcial ou completa nas funções habitualmente integradas de memória, consciência, identidade, e nas sensações e controle dos movimentos corporais. A etiologia presumida para esses quadros é psicogênica, ou seja, não existiriam causas orgânicas subjacentes. São quadros que fazem parte do cotidiano não só dos psiquiatras, mas também dos clínicos (e médicos em geral).

Esses transtornos correspondem aos quadros tradicionalmente chamados de histéricos, portanto, podem ser vistos como uma nova leitura de um texto dos mais antigos (a histeria). Sintomas dessas manifestações são conhecidos desde a Antiguidade, sendo atribuídas a Hipócrates algumas de suas primeiras descrições.. A própria história das neuroses confundiu-se por muito tempo com a da histeria. Quadros muito variados eram imprópria e conjuntamente reunidos, a ponto de, no século XVII, cerca de metade das doenças crônicas ser atribuída a ela.

No século XIX surgiu um novo interesse pela histeria, estimulado pelas pesquisas de Charcot. Um de seus alunos, Janet, que muito se utilizou da hipnose na investigação de pacientes histéricos, desenvolveu o conceito de dissociação mental, denominação presente na nomenclatura atual (Nemiah, 1999) e que permanece ligada ao entendimento moderno de suas manifestações clínicas. Outro aluno de Charcot, Freud, propôs que a causa da histeria seria psíquica e de natureza inconsciente, sublinhando o papel da sexualidade na sua origem. Ele introduziu o termo conversão como um mecanismo de formação de sintomas próprio da histeria.

Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os quadros dissociativos e conversivos foram categorizados juntos sob o nome de histeria de conversão. Com o advento das modernas classificações (CID e DSM), os quadros dissociativos, os conversivos e ainda os de somatização9 (que serão mencionados posteriormente) passaram a ser classificados de modos variados, por vezes em conjuntoo, por vezes separadamente.

As classificações atuais, que privilegiam uma abordagem fenomenológica, introduziram a categoria Transtornos Dissociativos em substituição aos conceitos anteriores, por considerar que o termo histeria teria muitos e variados significados. Seu uso indiscriminado tornou a sua utilização problemática. A CID-10, classificação atualmente proposta pela Organização Mundial de Saúde, utiliza a categoria Transtornos Dissociativos (ou Conversivos) englobando basicamente os mesmos fenômenos clínicos (dissociativos e conversivos). Já a atual classificação norte-americana (DSM-IV) separou os quadros conversivos dos dissociativos e reuniu os primeiros dentro de outra categoria, os Transtornos Somatoformes. Neste capítulo, iremos acompanhar a classificação proposta pela OMS (a CID-10), por considerá-la mais coerente e próxima da clínica.

É importante notar que existem fortes influências socioculturais sobre as manifestações sintomáticas desses quadros, que variam com a época e com o ambiente: há uma particular sensibilidade ao "espírito do tempo". O mesmo não ocorre quanto à chamada estrutura do caráter histérico, que é um substrato constante da personalidade.

Pode-se dizer que o conteúdo manifesto dos quadros que examinaremos representa um exagero patológico de certas formas normais de expressão. Existem manifestações não-verbais da emoção, como o medo que paralisa a voz ou as pernas, e o incômodo de certas realidades, que nos fazem esquecer delas. Os pacientes histéricos falam essa "linguagem" dos órgãos com uma habilidade especial. Eles vivem as metáforas ao invés de falá-las.

A importância para o médico e para o estudante de Medicina do conhecimento das entidades clínicas que serão agora descritas pode ser depreendida da vivência cotidiana de qualquer clínico, que amiúde se defronta com pacientes que apresentam inúmeros e variados quadros clínicos, sem que se reconheça qualquer patologia médica conhecida que os justifique. Uma parcela considerável desse contingente (embora não toda ela) é composta de portadores de transtornos dissociativos/conversivos (histeria).

Conceitos Básicos

Dissociação: separação entre os elementos de uma unidade; neste caso, perda da unidade psíquica, na qual a consciência (entendida como o todo momentâneo da vida psíquica e que inclui memória e identidade) se altera temporariamente. Um de seus aspectos deixa de funcionar integradamente aos outros, como se não pertencessem todos à mesma pessoa e não se pode atribuir isso a nenhuma causa orgânica. Exemplos: amnésias localizadas e temporárias, estados de transe em que o paciente age como se estivesse tomado por outra personalidade, etc.

Conversão: transposição de um conflito psíquico (numa tentativa de resolução) em sintomas somáticos, presentes basicamente nos sistemas neuromuscular voluntário (paralisias) ou sensório-perceptivo (anestesia). Sua característica básica é ter um significado simbólico, ou seja, o corpo exprime representações recalcadas (reprimidas). Freud introduziu esse termo referindo-se ao "salto do psíquico para a inervação somática".

Quadros Clínicos

Os grandes ataques de histeria estudados por Charcot são raros nos nossos dias, porém seus fragmentos e derivações compõem os diferents quadros clínicos atuais. Será utilizada, como foi mencionado anteriormente, a subdivisão de quadros nosológicos de acordo com a CID-10.

• Quadros basicamente dissociativos

Amnésia dissociativa. Caracteriza-se por uma perda de memória, que abrange frequentemente acontecimentos recentes, física ou emocionalmente traumáticos (p.ex., mortes, acidentes). Tem início súbito e duração de algumas hora a poucos dias. Adultos jovens são mais acometidos. Estes quadros são mais comuns em prontos-socorros de hospitais gerais. A amnésia lacunar é mais frequente, sendo a generalizada (que abarca toda a vida) pouco comum. A atitude dos pacientes em relação ao seu próprio estado é variável, podendo ser de angústia, mas não é raro que eles exibam uma intrigante indiferença; o comportamento de chamar a atenção também pode estar presente.
O diagnóstico diferencial deve ser feito com transtornos mentais orgânicos, abuso de álcool ou drogas e simulação. Quanto aos primeiros, nos quais geralmente se observam obnubilação (deslumbramento ou trevas, fenômeno que se experimenta nos pródromos - indisposição que antecede uma doença - de certas enfermidades ou em consequência de outras), desorientação e flutuações do nível de cosciência, devem ser mencionados a epilepsia e o trauma craniano (nos quais dados da história ajudam no esclarecimento diagnóstico) e ainda a doença vascular (que geralmente acomete idosos). É também importante interrogar quanto ao uso excessivo de álcool ou drogas pouco antes do surgimento da amnésia. A simulação, por vezes difícil de ser reconhecida, serve para que o indivíduo obtenha algum benefício ou se livre de problemas. Apenas a amnésia dissociativa pode ser influenciada pela hipnose.
A possibilidade de recuperação das memórias perdidas é boa, embora haja o risco de ocorrerem repetições do quadro.

Fuga dissociativa. Caracterizada pelos fatos descritos no quadro anterior, aos quais se soma uma viagem despropositada para longe dos locais habituais, com a adoção de uma nova identidade. Geralmente com duração de alguns dias, pode eventualmente se manter por períodos prolongados. Parece ser um transtorno raro e mais frequente em homens.
O diagnóstico diferencial é feito principalmente com os demais quadros dissociativos, como fuga pós-ictal (na epilepsia de lobo temporal) e simulação. A observação das características clínicas, como a ocorrência ou não de viagens despropositadas, e a existência ou não de diversas personalidades permitem a diferenciação com os outros quadros dissociativos. Já na fuga pós-ictal, geralmente existe histórico anterior de manifestações epilépticas, as viagens têm um caráter menos complexo e não envolvem a formação de uma nova identidade; pode-se recorrer ao eletroencefalograma (EEG), que apresenta traçado característico.

Estupor dissociativo. Consiste no estado de dimunuição extrema ou mesmo ausência de movimentos voluntários e de responsividade a estímulos externos (sons, luzes, etc.). O paciente permanece deitado ou sentado, não fala, nem se movimenta, entretanto percebe-se que ele não está dormindo ou inconsciente. Esses quadros são relativamente comuns em prontos-socorros. Como nos demais quadros dissociativos, existem fatores sugestivos de uma causa psicogênica (situação emocional conflitiva), que estaria na origem dessa situação.
O diagnóstico diferencial deve ser feito com estupor catatônico, no qual existe uma história de sintomas característicos da esquizofrenia antecedendo o quadro, e estupor depressivo ou maníaco, no qual também existe uma história anterior, agora característica de um transtorno de humor. As informações prestadas por um acompanhante são fundamentais.

Transtornos de transe e possessão. Quadros em que há uma perda temporária da identidade´pessoal e da noção do ambiente onde se está, podendo também ocorrer de o paciente agir como se estivesse tomado por outra personalidade ou espírito. Pode haver uma repetição de movimentos e sons. Deve-se considerar como patológicas apenas situações indesejadas e fora de um contexto religioso ou cultural esperado.
A diferenciação com transtorno de personalidade múltipla baseia-se no estado da consciência, que permanece em alerta quando aparecem novas personalidades, enquanto no transtorno de transe, a manifestação de uma nova personalidade é acompanhada pela alteração da consciência, característica do transe. Episódios de transe que possam ocorrer no curso de quadros psicóticos (como a esquizofrenia), transtornos mentais orgânicos (epilepsia do lobo temporal, TCE) ou intoxicação por substâncias psicoativas não devem ser incluídos no diagnóstico.
A título de exemplo, pode-se mencionar uma situação ocorrida num pronto-socorro, para onde foi levada uma mulher jovem que se expressava com voz masculina, fazia movimentos que seus acompanhantes diziam não lhe serem comuns, dizia estar "tomada por um espírito masculino", que curiosamente vinha encaminhada de um "centro" do qual o próprio responsável havia aconselhado que se procurasse ajuda médica.

Transtorno de personalidade múltipla. Caracteriza-se pela existência aparente de duas ou mais personalidades distintas dentro de um mesmo indivíduo, com alternância entre elas. Cada personalidade tem características distintas (nome, idade, história, traços físicos e psicológicos), podendo haver uma personalidade dominante. Considerado um quadro pouco frequente, seu diagnóstico tem despertado renovado interess por parte de pesquisadores, em função do surgimento de novos relatos. É mais comum em mulheres e há menção frequente a abusos físicos e sexuais durante a infância.
A ocorrência de fenômenos alucinatórios pode gerar dúvidas quanto à presença de esquizofrenia, na qual, entretanto, a história pregressa com distúrbios do pensamento e do afeto geralmente é evidente. A hipótese de haver transtorno de personalidade borderline deve ser afastada, já que neste não há a presença clara de personalidades distintas e alternadas.
Apesar de controvérsias quanto a aspectos de sua fenomenologia, diagnóstico e tratamento, esse quadro tem sido diagnosticado e tratado com uma frequência crescente, principalmente nos EUA, chegando-se a questioná-lo como uma condição característica da cultura norte-americana.
O relato de um caso é feito no final deste capítulo.

• Quadros basicamente conversivos

Transtornos motores dissociativos. Caracterizam-se pela perda da capacidade de mover completa ou parcialmente um ou mais membros do corpo, sem evidência de transtorno físico que a justifique. Também pode ocorrer incoordenação de membros, por exemplo das pernas, provocando incapacidade de ficar em pé sem apoio (astasia-abasia). Podem ainda ocorrer tremores pelo corpo.
As paralisias não seguem as leis da organização anatômica, mas as representações leigas do paciente (um braço, uma mão, etc.); também não são acompanhadas por distúrbios dos reflexos e do tônus, como acontece nas patologias orgânicas. O quadro pode desencadear ansiedade, mas não é raro que o paciente apresente uma indiferença à sua limitação.
Por vezes, observam-se manifestações espasmódicas (por exemplo, vômitos) e contraturas musculares (por exemplo, torcicolo).
Transtornos físicos, principalmente os neurológicos em seu estágio precoce como e sclerose múltipla, miastenia gravis, Tu cerebral e lúpus eritematoso sistêmico, podem confundir o diagnóstico e requerer períodos prolongados de observação para uma correta diferenciação. A possibilidade de simulação consciente também deve ser considerada, quando circunstâncias colhidas na história (benefícios obtidos, problemas evitados) assim indicarem.

Convulsões dissociativas. Apresentam-se como imitações de crises epilépticas (pseudoconvulções), geralmente sem alguns dos fenômenos comuns na epilepsia, como incontinência urinária, mordedura da língua e escoriações devidas à queda. A perda de consciência é substituída por um estado de estupor ou transe. Esses quadros motivam, com frequência, o intercâmbio entre neurologistas e psiquiatras em locais como salas de emergência, na tentativa de um esclarecimento diagnóstico. Embora certos casos sejam de fácil elucidação, existem situações bastante dúbias e confusas, como os casos de convulsões dissociativas em epilépticos comprovados.
Outros achados que auxiliam no diagnóstico diferencial com a epilepsia são a preservação de reflexos corneanos, pupilares e mandibulares e a ausência de respostas extensoras plantares que sugerem pseudoconvulsões. O EEG a filmagem simultânea do comportamento por vezes são esclarecedores.

Anestesia e perda sensorial dissociativas. Áreas anestésicas configuram uma espécie de imaginação funcional que exclui as percepções táteis, dolorosas e térmicas de segmentos corporais, não obedecendo às leis de inervação das vias da sensibilidade. Como no caso das paralisias, é a idéia leiga ou uma fantasia do paciente que determina a área afetada. Também ocorrem queixas de parestesias e ainda regiões de hiperestesia (p.ex., aumento da sensibilidade na extremidade cefálica).
Das demais alterações sensoriais, as visuais são as mais frequentes. Perda da acuidade visual, visão em túnel e outras alterações parciais são mais comuns do que a cegueira histérica, sua manifestação mais radical. Surdez e a anosmia (perda ou enfraquecimento do olfato) dissociativas são menos frequentes.
A história clínica acompanhada de exames físicos e neurológicos é fundamental para a diferenciação com patologias clínicas, principalmente neurológicas. Podem surgir achados esclarecedores, como a queixa de perda de sensação total nas pernas e pés que não impede que o paciente caminhe no escuro sem tropeçar (senso de aposição preservado). Também existem pacientes com queixa de perda da acuidade visual ou mesmo cegueira que se locomovem com habilidade e sem bater nos objetos; ao exame, as pupilas reagem à luz e os potenciais evocados visuais no EEG são compatíveis com uma visão normal.

• Quadros mistos

Transtornos dissociativos (ou conversivos) mistos. Elementos dos diferentes quadros já descritos se misturam, tanto dentro de um mesmo grupo (por exemplo, diversos quadros basicamente conversivos), como entre quadros pertencentes aos dois grupos (dissociativo e conversivo).

Características de Personalidade

Os pacientes anteriormente descritos possuem, frequentemente, além dessas manifestações sintomáticas, algumas características de personalidade que aqueles que irão atendê-los devem conhecer. O termo "personalidade histérica" já foi muitas vezes utilizado para descrevê-las. Naturalmente são traços de personalidade que também podem ser encontrados em indivíduos considerados normais, assim como em outros transtornos psiquiátricos, mas que têm uma frequência e um papel particularmente importante nos transtornos dissociativos.

Essas características, ressaltadas por muitos autores, principalmente aqueles de orientação psicanalítica, que as vêem como o embasamento, o pano de fundo das manifestações sintomáticas, recebem pouco destaque nas classificações nosológicas (classificações das doenças) atuais, as quais buscam a menor vinculação possível com uma determinada escola teórica.

Sugestionabilidade. Ocorre uma particular sensibilidade à sugestão; os pacientes são pessoas influenciáveis.
Pode-se observar essa característica em certos casais, nos quais a mulher com fortes traços histéricos passa a ser a defensora das opiniões e idéias do marido, parecendo abrir mão das suas próprias para reforçar as dele, e ser a primeira a congratular-se pelo prestígio que ele venha a obter. Uma consequência desse fato é que esses pacientes apresentam uma grande suscetibilidade à hipnose.

Dependência. Bastante ligada ao item anterior, a dependência aqui parece adotar a forma de uma espécie de abdicação da própria personalidade para confundir-se com a do outro. Muitas vezes, ela se revela na forma de um certo infantilismo. Contraditoriamente, observa-se que, ao lado dessa suposta fragilidade e necessidade de proteção, frequentemente combinam-se certo autoritarismo e habilidade para manipular os outros.

Perturbações da sexualidade. Não é de uma vida sexual saudável, apenas excessivamente intensa que se trata. A sexualidade tem a apresentação de um aparente exagero que contrasta com fortes inibições sexuais. O aspecto sedutor desses pacientes frequentemente esconde a frigidez e a impotência sexual.

Teatralidade. Refere-se a um comportamento dramático, a um certo tipo de exibicionismo e a uma expressividade exagerada. Essa característica é, por vezes, chamada de histrionismo; o histrião era, na Roma antiga, um ator que representava farsas grosseiras. Diz-se de alguns dos pacientes aqui descritos que são atores ruins.

Diagnóstico

O diagnóstico dos transtornos dissociativos (ou conversivos) é feito pela identificação dos quadros clínicos já expostos (sintomatologia dissociativa e/ou conversiva). A isso se juntam as características de personalidade que, se não estão presentes em todos os pacientes, exercem papel fundamental em muitos, configurando o "cenário completo" da histeria.

É com relação aos quadros orgânicos, particularmente aos neurológicos (como a epilepsia), que se deve estar atento, devido ao fato de os transtornos dissociativos (ou conversivos) poderem simular muitos dos aspectos da patologia clínica. A avaliação, portanto, deve incluir exames físicos e neurológicos, complementados por exames subsidiários quando sugeridos a partir dessas avaliações.

Ainda como complemento, uma causa psicológica deve ser aventada como elemento essencial do diagnóstico a ser feit. Tato eventos estressantes recentes (fatos desagradáveis ou mesmo traumáticos associados temporalmente) como mecanismos psíquicos de natureza inconsciente (como, por exemplo, o recalque, também chamado de repressão) devem estar implicados na origem do quadro.

Uma distinção que atualmente se faz necessária é entre os quadros dissociativos e os transtornos somatoformes. Estes últimos correspondem a uma categoria diagnóstica cujos quadros clínicos caracterizam-se pela presença, por longo tempo (meses ou anos), de queixas frequentes de sintomatologia física, que sugerem a presença de um substrato orgânico, mas que não são totalmente explicadas por nenhuma das patologias orgânicas conhecidas; mesmo na presença de doenças orgânicas comprovadamente diagnosticadas, não existe uma explicação lógica para toda a sintomatologia referida.

Os pacientes com quadros somatoformes apresentam uma dificuldade particular no estabelecimento do vínculo médico-paciente, em decorrência de um questionamento constante por parte do paciente em relação às assertivas emitidas pelo profissional, principalmente aquelas referentes à provável inexistência de substrato orgânico detectável. Pode-se notar que existem pontos de contato entre ambos os diagnósticos, tornando sua distinção por vezes muito difícil. De modo geral, os pacientes histéricos apresentam um funcionamento psíquico mais rico do que os somatizadores, já que nestes há pobreza da imaginação, das fantasias e excessiva concretude dos pensamentos, características que não se observanm nos histéricos.

Outros transtornos psiquiátricos que também devem ser diferenciados são aqueles por uso de substância psicoativa, episódios depressivos, esquizofrenia e simulação.

Quanto à evolução, os quadros dissociativos/conversivos geralmente são de curta duração (paroxismos), embora possam existir alguns que se prolonguem (por exemplo, certas paralisias). Há, frequentemente, uma tendência à repetição dos quadros nos mesmos pacientes, conferindo um caráter de cronicidade à patologia. Períodos de maiores dificuldades ou grande exigência na vida dos pacientes tendem a exacerbar as manifestações clínicas. Alguns pacientes manifestam crises depressivas associadas ao longo da evolução.

Tratamento

A abordagem terapêutica dos transtornos dissociativos (ou conversivos) depende de uma avaliação global de cada situação clínica.

Em um dos pólos possíveis, encontram-se os quadros localizados, eventuais, sem grandes repercussões na vida do paciente. São situações em que a manifestação patológica frequentemente está ligada a uma dificuldade específica na vidao do paciente, que responde a ela com um dos quadros descritos, que não faz parte do erepertório habitual de suas reações. São relativamente comuns nos setores de urgência, pacientes jovens que após o término de um namoro, ou mesmo após uma discussão mais tensa, dão entrada carregados por parentes, amigos ouy pelo próprio namorado(a), frequentemente se sentindo culpado(a) e por isso mesmo exigindo atendimento imediato. O paciente permanece sem estabelecer contato, sem conseguir se manter em pé e com o relato de ter sofrido "um ataque", num quadro de fato classificado como uma convulsão dissociativa.

Durante o atendimento, o médico é informado que essa manifestação não é comum no paciente, o que explica em parte a mobilização causada. O paciente deve ser colocado em um local calmo e separado dos acompanhantes. Logo que possível, deve-se abordá-lo verbalmente. Eventualmente, um ansiolítico (por exemplo, diazepam de 5 a 10 mg, VO, ou bromazepam de 3 a 6 mg, VO, ambos em dose única) pode auxiliar a diminuir uma situação angustiante, facilitando a abordagem. Frequentemente, uma orientação que esclareça a situação (e, por vezes, o significado implícito dos sintomas) pode ser suficiente nesses casos. A disponibilidade do médico para uma nova consulta, caso o paciente necessite, é desejável.

Num outro póloç, estão situações repetitivaws, por vezes jácrônicas, com importante repercussão na vida do paciente. Pode-se pensar nos casos em que diferentes formas clínicas se juntam a traços marcantes da personalidade, numa configuração problemátidca e grave. Nessas situações, é preciso pensar numa conduta mais complexa e de longo prazo. O procedimento básico é a psicoterapia. Não existe medicação específica para os transtornos dissociativos (ou conversivos), embora possam ser utilizados psicofármacos em algumas situações específicas, com um caráter sintomático.

Outro aspecto importante a ser considerado na indicação de tratamento é a disponibilidade do paciente, assim como suas condições e características psíquicas. Como fatores favoráveis à indicação de psicoterapia pode-se citar pacientes mais jovens, abertura para essa modalidade de tratamento e certa capacidade de elaboração mental. Por outro lado, os pacientes mais idosos, com dificuldades de abstração e reflexão, e ainda aqueles que obtêm muitos benefícios secundários são menos adequados a uma psicoterapia, restringindo a possibilidade de abordagem e consequente melhora.

Uma menção deve ser feita à hipnose, visto que esses pacientes são particularmente sugestionáveis e, portanto, suscetíveis à hipnose. Essa técnica foi bastante utilizada durante o século XIX na investigação da histeria, pois podia trazer à consciência conteúdos mentais que devido a processos dissociativos haviam se tornado inconscientes, assim como produzir muitos dos sintomas histéricos. Atualmente pouco praticada em nosso meio, ela é utilizada em outros países, como nos EUA, em particualr na abordagem de quadros dissociativos, frequentemente em associação com psicoterapia.

Psicoterapia. Existem inúmeras possibilidades psicoterápicas, com alcance e pretensões diversos. Nos quadros dissociativos (ou conversivos) mais severos, com pacientes disponíveis e com capacidade de "insight", as modalidades reconstrutivas de psicoterapia, como a psicanálise, devem ser indicadas. Casos em que existe um quadro menos grave ou o paciente é muito resistente ou limitado psiquicamente, as modalidades que se direcionam para o simples desaparecimento dos sintomas podem ser úteis e, até mesmo, as únicas opções.
É oportuno citar que técnicas cognitivo-comportamentais têm sido utilizadas de forma crescente neste campo.

Psicofármacos. São utilizados sisntomaticamente. São comuns quadros depressivos associados, quando então tornam-se úteis os antidepressivos, usados de acordo com os princípios gerais da terapia antidepressiva: não há indicação de um antidepressivo em particular, as características de cada caso devem orientar a conduta. Os ansiolíticos também podem ser utilizados quando, ao invés da indiferença típica dos histéricos, manifestar-se um colorido de forte ansiedade; embora aqui também não haja especificidade, uma alternativa possível é o diazepam (por ser facilmente disponível) de 5 a 20 mg/dia, VO, apenas enquanto a sintomatologia ansiosa persistir.
Os neurolépticos, embora pouco mencionados na literatura, podem ser utilizados em baixas dosagens, em alguns casos basicamente dissociativos, como no transtorno de transe e possessão; um esquema possível é haloperidol 5 mg/dia, VO, enquanto persistirem os sintomas.

O profissional e o manejo da situação nos Transtornos Dissociativos (ou Conversivos)

Se a situação dos pacientes já foi abordada, cabem algumas considerações a respeito do profissional que irá atendê-los. O encontro com os pacientes histéricos frequentemente mostra-se difícil e por vezes propenso a atitudes inadequadas por parte do profissional. A característica clínica de manifestações somáticas sem substrato anatômico pode causar no médico a sensação de estar sendo enganado propositadamente e, dependendo de algumas características subjetivas deste, levá-lo a querer "dar o troco". Disso podem decorrer algumas condutas hostis, como medicações dolorosas ou inadequadas, exames desagradáveis e até mesmo "beliscões terapêuticos". É importante estar atendo a esse risco para evitá-lo.

Esse encontro também pode adquirir uma conotação oposta, marcada por simpatia excessiva, que esses pacientes sedutores despertam. Frases do tipo "nunca fui atendia por um médico tão bom como o senhor" ou tantas outras similares muitas vezes levam o profissional a se ver de fato como "alguém especial". Isso pode evoluir apenas para uma aliança, uma cooperação mútua, mas também pode evoluir para um envolvimento afetivo que pode prejudicar o profissional; ele deve estar atento para isso.

Embora essas dificuldades possam ocorrer, o profissional deve colocar-se na posição de ouvir o que o paciente tem a dizer, e não apenas privilegiar seus sintomas. As queixas somáticas são, frequentemente, um modo desses pacientes se comunicarem com seus familiares, que assim lhe dedicarão mais atenção, e com seu médico, treinado para entender os sintomas físicos, A atitude de ouvi-los e se interessar por eles (e não apenas pela sua doença) pode ser por si terapêutica.

Relato de Caso

A título de ilustração, será apresentado um fragmento do atendimento psicoterápico, iniciado 3 meses antes, de uma paciente com transtorno de personalidade múltipla. Os nomes e algumas circunstâncias foram alterados. São apresentados, inicialmente, alguns dados sobre o caso.
Marta, 29 anos, separada, 3 filhos, natural da Bahia, em São Paulo há 1 ano, foi atendida no pronto-socorro com queixas de não se lembrar de coisas que fazia; ela saía de casa para ir a certos lugares dizendo ter outro nome e não se lembrava desses fatos posteriormente. Contava ter tido um relacionamento difícil com a mãe, com maus-tratos e constantes interferências nos seus casamentos. Não conheceu o pai, sendo cçriada por um padrasto. Casou-se pela primeira vez aos 14 anos, separando-se anos depois. Teve um segundo casamento também desfeito; sentia repulsa ao relacionamento sexual.

Do pronto-socorro onde foi medicada com neuroléptico por um certo período de tempo, ela foi encaminhada para o atendimento psicoterático. Seus atendimentos eram marcados por relatos interessantes, misteriosos e sedutores, que prendiam a atenção de Paulo, o terapeuta.

Sessão 1

Marta: Deixa eu ver o que é que vou falar para o senhor hoje. Recebi um telefonema da minha cidade, falando sobre minha filha que está com o braço engessado. O meu filho Jonas cvhegou a São Paulo. Eu não sei mais o que faço, todos os dias vou até a rodoviária para comprar uma passagem de volta para a Bahia, mas na hora não tenho coragem e acabo voltando para casa.
Paulo: Marta, estou com a impressão de que você está com um tom de voz diferente.
Marta: É mesmo, as crianças estão comentando que a minha voz está diferente.
Paulo: E por que será?
Marta: Sabe, têm acontecido umas coisas estranhas comigo: estou vendo as coisas se mexerem. De repente, eu olho para a mesa, as cadieras, e elas começam a se mexer. E eu estou esquecendo as coisas que faço. As crianças disseram-me que eu levantei cedo, fiz o almoço contente, mas eu não me lembro de ter feito o almoço. (Apoós um certo silêncio, ela começa a sorrir.) Eu estou me sentindo muito feliz estes dias, e não é porque o Jonas chegou. Eu vou contar um segredo (diz quase sussurando): eu vou embora. Conheci um homem pela Internete e vou morar com ele. (...) (Abaixa a cabeça e fica em silêncio, depois olha fixamente para o terapeuta com um olhar desfiador.) Você não vai perguntar o meu nome?
Paulo: Por que eu deveria perguntar o seu nome?
Marta: Porque eu jávim aqui duas vezes e você nunca perguntou.
Paulo: Está bem, qual é o seu nome?
Marta: É Mercedes.
Paulo: Então me fale de você. Quem é a Mercedes?
Marta: Todo mundo diz que eu não me chamo Mercedes coisa nenhuma. Ninguém acredita em mim, ficam falando que meu nome é Marta.
Paulo: Você sabe quem é a Marta?
Marta: A Marta é uma tonta! Só quer saber de ficar quietinha, chorando pelos cantos. Todo mundo a maltrata, e ela fica trancada no banheiro chorando. (...) Não seo o que seria dela sem mim. Ela dá muita importância para o que os outros acham. Ela não passa um batom, nem veste uma roupa decente porque acha que os outros não vão gostar. Eu não, eu faço o que tenho vontade. Eu me pinto, eu danço, me divirto.
Paulo: Então, a Marta é uma pessoa que se sente muito frágil e que precisa de você para defendê-la?
Marta: é isso mesmo, até hoje ela só não fez nenhuma besteira porque eu não deixei. Ela fica se fazendo de boazinha, mas aposto que não te contou certas coisas que fez. (...) Pergunta para ela quando ela vier aqui de novo.
Paulo: Parece que existem coisas que a Marta gostaria de me contar, mas acha que não pode ou que não deve. Aí você vem e me conta.
Marta: É verdade. Tem muitas coisas que ela não te contou.
Paulo: Deixa eu tentar entender: eu tive a impressão de ter começado essa conversa com a Marta. Depois, num determinado momento, eu passei a conversar com a Mercedes. O que será que aconteceu? Em que momento , e por que aconteceu essa mudança?
Marta: Era eu desde o começo. Eu só estava querendo ver se você ia perceber. Mas você é esperto, percebeu por causa do tom de voz dela. Gostei de conversar com você, acho que vou voltar aqui outras vezes.

Sessão 2 (3 dias depois)

Paulo: Por que você está chorando?
Marta: (Em tom irritado, ainda soluçando.) Eu não estou chorando. Eu não sou de ficar chorando. Quem chora o tempo todo é aquela Marta, não sabe fazer outra coisa a não ser chorar. Eu não, eu gosto mesmo é de me divertir: de dançar, de transar. Ela só pensa em fazer besteira, eu é que não deixo. Agora só pensa em matar os filhos dela! Ela te falou que já deu veneno para os filhos?
Paulo: Quando foi isso?
Marta: Quando o primeiro marido dela foi embora. Os meninos eram bem pequenos.
Paulo: Você parece estar com a Marta há muito tempo!
Marta: Desde os 14 anos dela.
Paulo: Onde vocês se conheceram?
Marta: Foi num centro espírita. Eu estou sempre junto com ela. Eu a levo para dançar, para se divertir, só não a levo para transar.

Esse relato ilustra muitas das características dos pacientes com transtornos dissociativos/conversivos e, especialmente, com transtorno de personalidade múltipla.

O procersso dissociativo é evidente; a exclusão de certos aspectos da personalidade de Marta (desejos censuráveis), os quais retornam por meio de "outra personalidade" (Mercedes), é o foco dessa descrição.

O início da vida da paciente foi marcado por um relacionamento agressivo por parte de sua mãe e pela ausência do pai. Sua vida amorosa era bastante insatisfatória, caracterizava-se pela falta de prazer sexual, e depois se transformou por meio de Mercedes numa certa liberalidade. E, por fim, os atendimentos psicoterápicos evidenciam uma comunicação que prende a atenção e sedua ("Mas você é esperto . (...) Gostei de conversar com você").

Esse relato exemplifica em parte a instigante e complexa realidade desses pacientes, que tanto incomodam aqueles com quem convivem como chamam a atenção daqueles que os atendem.

3 comentários:

  1. Nossa, mas esta Publicação Serve para realização de Abordagem em Sala. Gostaria de Saber a Possilidade de Saber as Referencias e ou Fonte.... E como fazer para Entrar em Contato com VC Akira NAKANO. Meus Parabéns. Esta Postagem Rica com Conteudo Claro de facil Compreensão. Gostaria de Seu RETORNO... Meu Email é lealste@gmail.com. Aguardo o seu RETORNO.

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  2. Obrigada, Estudando transtornos mentais. Ajudou bastante.

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  3. Que material rico o que você trouxe aqui. Melhor que algumas literaturas, de clara compreensão embora técnica e instigante.
    Seria interrestante dispor suas referências e sugestões de leitura. Fiquei surpresa de ver um blogue com tanta informação científica, não consegui parar de ler esta publicação até terminar completamente.
    O caso citado ao final, é um excelente exemplo! Agregou muito ao conteúdo.
    Apenas lhe faço uma ressalva construtiva... Revise este conteúdo, porque há alguns erros de digitação.

    Obrigada,
    Estefanybarroslima@gmail.com

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Quem sou eu

Nascido no Japão como filho de massagista shiatsu em 1947, imigrado ao Brasil em 1959, residente em Marília/SP/Brazil desde 1997.

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