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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Psiquiatria: Epidemiologia dos Transtornos Mentais

Jair de Jesus Mari & Miguel Roberto Jorge
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Os levantamentos epidemiológicos populacionais realizados no Brasil apontam para uma prevalência de transtornos mentais aproximada de 30% na população adulta no período de um ano. Quando a prevalência de transtornos mentais é ajustada para os casos que demandam algum tipo de cuidado médico, chega-se a uma estimativa aproximada de 20%, ou seja, um em cada cinco adultos demanda algum tipo de atenção em saúde mental num período de 12 meses. Entre as mulheres são mais comuns os transtornos de ansiedade (9%), os transtornos somatomorfos (3%) e os transtornos depressivos (2,6%). Na população masculina a dependência ao álcool (8%) aparece como o problema mais importante, seguido dos transtornos de ansiedade (4,3%). Pode-se concluir que há, na população, concentração de ansiedade e depressão nas mulheres e de dependência ao álcool entre os homens. Os transtornos psiquiátricos são mais frequentes na população feminina, aumentam com a idade e apontam para um excesso no estrato de baixa renda.
Vários estudos epidemiológicos foram realizados em diferentes partes do mundo para avaliar a magnitude e a natureza dos transtornos mentais na clínica geral. As investigações que estimaram a morbidade pelas avaliações psiquiátricas padronizadas mostraram, em geral, maior frequência de transtornos mentais quando comparados com os estudos que se basearam na identificação realizada pelos clínicos. Cerca de 2/3 dos estudos que avaliaram morbidade com instrumentos padronizados colocaram a prevalência de transtornos mentais na clínica geral entre 27 e 48%. A mediana da prevalência encontrada é de cerca de 25%, casos esses que teriam gravidade semelhante à dos pacientes atendidos nos ambulatórios especializados em psiquiatria. Os transtornos psiquiátricos mais frequentes na clínica geral são os chamados transtornos psiquiátricos menores: transtornos de ansiedade, transtornos depressivos e transtornos somatomorfos.
A responsabilidade dos cuidados da maioria desses transtornos é do clínico geral, sendo que apenas um em vinte casos psiquiátricos presentes na atenção primária é encaminhado para o médico especialista. Esses dados são corroborados pelo consumo de psicotrópicos pela população. Um estudo com amostra probabilística da cidade de São Paulo demonstrou que mais de 10% da população adulta havia utilizado algum tipo de medicação psicotrópica no período de um ano. As mulheres apresentaram prevalência de consumo aproximada de 14% e os homens, prevalência de 5%. O maior consumo é de benzodiazepíncos, em sua maioria prescritos por clínicos gerais (60%) e cardiologistas (15%). Os especialistas em psiquiatria são responsáveis por somente 11,7% das prescrições de transquilizantes, cujo consumo aumenta com a idade e é maior em classes de renda mais elevada. Em outro estudo realizado em três centros de atençaõ primária na cidade de São Paulo, comparando o nível de morbidade real e a prevalência identificada pelos clínicos gerais, verificou-se uma perda de casos diagnosticados entre 22 e 79%, demonstrando a necessidade daqueles desenvolverem maior habilidade na identificação de casos psiquiátricos. Uma suspeita confirmada nesse estudo é que vários casos, que necessitam de tratamento na comunidade, não recebem a devida assistência. Comparando a prevalência de depressão na cidade de São Paulo em 1990 e o consumo de antidepressivos no período correspondente, chegou-se à conclusão de que somente 1/5 dos casos recebeu tratamento adequado.
Um aspecto importante, dada a alta prevalência de transtornos mentais em serviços gerais de saúde, diz respeito à interação desses transtornos com doenças físicas, o que pode se dar em 3 direções:
a) o transtorno mental pode ser consequência de doença física, como estado depressivo decorrente de patologia física grave e/ou incapacitante;
b) o transtorno mental pode se apresentar por uma manifestação orgânica, como dores localizadas ou generalizadas;
c) pode haver comorbidade entre o transtorno mental e um distúrbio de origem somática.
Há, nesse sentido, uma sugestão de classificação desenvolvida por David Goldberg, levando em conta a complexa relação existente entre transtorno mental e distúrbio orgânico. Na doença física com transtorno mental secundário todos os sintomas somáticos podemser atribuídos à doença física, o tratamento do transtorno mental não remove os sintomas físicos e o distúrbio psiquiátrico não teria ocorrido sem a doença física. Na doença física com transtorno mental não-relacionado não haveria vínculo entre os dois, sendo que o tratamento de um não afetaria o outro. No transtorno mental somatizado a consulta é motivada pelos sintomas físicos, o paciente atribui todos os problemas à doença física, mas um transtorno mental é claramente diagnosticável; o tratamento deste aliviaria ou removeria os sintomas físicos. No transtorno mental isolado os sintomas somáticos são ausentes ou o paciente considera-os decorrência do transtorno mental. Um problema dessa classificação é como distinguir, em algumas situações, os sintomas somáticos resultantes de um transtorno mental dos resultantes de uma doença física concomitante. Um número maior de manifestações psicopatológicas pode ser esperado nas seguintes condições orgânicas: doenças neurológicas, cardiopatias, doenças pulmonares crônicas, câncer, artrites e outras doenças orgânicas que cursam com incapacitação física.
Os resultados dos estudos epidemiológicos levam à conclusão de que o clínico geral (ou, em nosso meio, o médico não-especialista) é o profissional mais atuante em saúde mental. Esse fenômeno também é observado em países como a Inglaterra, os Estados Unidos e o Canadá, entre outros. A prática clínica do médico não-especialista demanda treinamento adequado em como diagnosticar e tratar as síndromes psiquiátricas mais frequentes na clínica geral. O paciente apresenta, em geral, sua queixa de um sintoma orgânico, pois acredita que o médico tem a expectativa de ouvir uma queixa somática em vez de um problema psicológico. É muito comum, por exemplo, uma depressão apresentar-se em termos somáticos. Um clínico não preparado tem mais dificuldade em diagnosticar um transtorno mental quando este é mascarado pelas queixas somáticas, num certo conluio entre médico e paciente de que a tarefa médica se restringe em afastar as patologias orgânicas. Há, portanto, um descompasso entre o ensino de psiquiatria, geralmente concentrado nas síndromes mais graves do espectro de morbidade, e as reais necessidades do clínico para atuar em saúde mental. Quais as necessidades gerais de conhecimento psiquiátrico e psicológico na clínica geral? Eis algumas recomendações a serem seguidas pelos médicos não-especialistas:
a) diagnosticar as síndromes mais frequentes na clínica geral (transtornos de ansiedade, depressivos e somatomorfos);
b) identificar os fenômenos psicológicos presentes no paciente e manifestos na relação médico-paciente;
c) investigar o contexto sociocultural (família, situação profissional, relações afetivas íntimas, perdas importantes) em que surgiu a manifestação psicopatológica;
d) fazer uso racional de medicamentos como benzodiazepínicos, hipnóticos e antidepressivos, e dar atenção às necessidades psicológicas do paciente.
Uma formulação diagnóstica que não se restrinja às patologias física e mental do paciente, e possa englobaralguns aspectos socioculturais e aqueles próprios daquela pessoa em particualr, em muito contribui para o sucesso terapêutico pretendido e o bom êxito daquela relação médico-paciente. Assim, a identidade cultural do paciente, sua compreensão a respeito da própria doença e os elementos culturais que norteiam sua relação com o médico são fatores importantes a serem considerados no manejo clínco de cada caso.
O papel mais importante do médico não especialista é desenvolver a habilidade de acolher o sofrimento mental. Os ingredientes psicoterápicos do encontro médico-paciente são dados pelos insights (quando o paciente percebe seus conflitos e problemas) e pela catarse (quando o paciente extravasa a emoção contida). Deve-se evitar frases como "o senhor não tem nada" (um paciente com pânico, por exemplo, tem pavor real de que pode morrer) e ter claro que se não é possivel ao médico "resolver o problema" do paciente, ainda assim ele poderá cumprir seu papel ao se dispor a ouvi-lo e oferecendo algum alívio. Infelizmente, um grande obstáculo para isso têm sido as condições de trabalho médico em serviços públicos e privados (à exceção do consultório particular), principalmente no que se refere à exiguidade de tempo despendido com cada paciente. Nessa circunstância, o pouco quantitativamente pode ser em parte compensado pela qualidade do oferecido.
Os transtornos mentais mais graves devem ser tratados pelo especialista, mas a frequência elevada de transtornos de ansiedade, depressão e dependência do álcool na população conferem ao médico não-especialista uma posição de destaque no cuidado à saúde mental. Contudo, essa evidência epidemiológica não se traduziu em mudança importante no ensino de psiquiatria nos cursos de graduação e nas atitudes gerais dos médicos diante dos transtornos mentais. Esse médico deve ser treinado para lidar com os problemas psicossociais comumente encontrados na prática médica. Modelos de ensino que combinam treinamento para entrevistar esses pacientes com o uso racional de psicotrópicos e o manejo de situações psicológicas simples precisam ainda ser desenvolvidos para se atingir um ensino de psiquiatria consoante às necessidades da clínica geral.
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Quem sou eu

Nascido no Japão como filho de massagista shiatsu em 1947, imigrado ao Brasil em 1959, residente em Marília/SP/Brazil desde 1997.

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